Às vezes fico me perguntando sobre a alma das cidades. Há algo que sentimos quando chegamos ou vivemos por um tempo. Mas isso nem sempre acontece quando voltamos a visitar. Não é exatamente o mesmo sentimento, digo eu que já andei e morei em várias cidades. Talvez seja algo que alguém sinta apenas uma vez e depois se esvai, com a sombra do tempo, nas dobras da vida. Assim deve ser também com as ruas, talvez, me pergunto diante da iluminação de João do Rio ao falar da alma da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Uma crônica? Um conto? Dúvidas da literatura em busca do mistério das palavras. Sobre quem esboroa o que? Somos nós? É a cidade? É a rua, ela mesma imersa na volúpia que certas cidades demonstram, em seus avanços expressando o desejo dos homens ou de certos homens, em certos momentos em suas vidas, confundindo os espaços suburbanos e urbanos. Quando penso na alma de minha rua eu misturo tudo, num só sentimento, eu e ela na minha vida com ela. Olho mais longe e tento captar que almas ela já teve, buscando achar a alma de hoje.
A Rua Gentios, no Coração de Jesus, em Belo Horizonte traz uma marca interessante. Os gentios eram quem? Sabemos que na criação de Belo Horizonte, vários grupos indígenas andavam pelos campos nesse espaço que é a cidade. Termo gentio refere-se aos não judeus, sendo bíblico e aqui, em nossa Terra Brasilis, tornou-se uma referência aos indígenas, eles também denominados bárbaros, por não serem crentes do Deus cristão.
Desenhada essa cidade, como se sabe, com régua e compasso, fora do contorno, que dá nome à avenida que a ela circunda, foram criadas várias áreas denominadas também suburbanas, planejadas como colônias agrícolas, visando a produção de alimentos para os moradores “da cidade”. Depois houve expansões, criando-se bairros nesse espaço da colônia agrícola, tal como o bairro Coração de Jesus, nome derivado do Colégio de Freiras instalado na margem do córrego do Leitão. Eram irmãs da ordem Sacré Coeur de Jesus, ordem francesa, traduzindo-se como Sagrado Coração de Jesus, e logo, talvez, alguém se referindo à região como “lá pelos lados do Coração de Jesus”. Então, pode-se imaginar que indígenas aqui estiveram, dado que o bairro Coração de Jesus é cortado pela Rua Iraí, que é uma palavra indígena traduzida como rio de mel, que se refere ao rio, talvez ao córrego depois chamado de Córrego do Leitão. Ora, o Colégio Sacré Coeur de Jesus tinha seu espaço delimitado pelo córrego do leitão e paralelo ao córrego, na parte de trás do Colégio, tem-se a Rua Iraí, que chega na Rua Guaicuí, que significa Rio das Velhas. A Rua Gentios corre, em parte, paralela à Rua Guaicuí. Logo, indígenas passaram por aqui, quem sabe aldeados nessa região que depois teve um caminho, denominado, talvez, a Rua dos Gentios, que começava no Córrego do Leitão, como a Rua Guaicuí. Antigos me falaram que em frente ao meu prédio havia uma pequena lagoa. Quem sabe alguém dizia que ali moravam os gentios ou alguém dizia, “lá pelos lados dos gentios”. Ou onde vivam os gentios. Os quais, provavelmente foram caçados, aprisionados ou simplesmente fugiram para mais longe, espalhando suas almas de aldeia pela cidade de Belo Horizonte. Pois sabe-se que hoje há grupos indígenas dispersos na população de Belo Horizonte, fala-se em mais de 7000 pessoas, buscando encontrar parte de sua identidade que provavelmente tiveram seus ancestrais não tão distantes que no tempo de um pequeno século.
Ah! Cidades que buscam não perder sua alma. Ah! Ruas que choram suas almas perdidas. Mas, devemos pensar que não é tão simples assim, não é tão trágico assim, todo o tempo. Aqueles homens que tentaram construir a cidade, que desenharam e sonharam com a organização da vida, a distribuição dos espaços, a criação das zonas suburbanas para produzir alimentos, também criaram, nos corações de todos, um sonho, uma vida propriamente dita, uma alma no viver diante de um Belo Horizonte. Mas a alma desses espaços tem a duração de uma vida. Sabemos que os indígenas que atacavam os povoadores estavam em situação de defesa da alma de seus espaços. Morreram ou se espalharam, sabe-se lá, levando os seus rituais, os seus idiomas, deixando alguns sinais na mente dos colonizadores, nomes das ruas, a denominação deles próprios pelos novos moradores, “os gentios”, marcando para sempre aquele espaço, a “rua dos gentios”, a Rua Gentios. Deixaram para trás parte da mata atlântica, que os outros não conseguiram dizimar totalmente até os dias de hoje, havendo resquícios dela, o bairro tendo proximidade com a chamada Mata do Mosteiro, que é uma área onde está o Mosteiro das Beneditinas, espaço de culto intenso e antigo, preservado ao longo do século de Belo Horizonte. Assim como um pequeno espaço transformado em parque, o parque Tom Jobim, com acesso a partir da Rua Gentios. Esses pequenos pedaços de matas são testemunhos do passado daqueles gentios que neles viveram e de algum modo tinham acesso pela sua rua, a rua deles, a rua dos gentios, a Rua Gentios.
Juvêncio Braga – Professor e Escritor (Tempo in blues .Giostri Editora,2023)